O Ministério Público Federal (MPF) acionou a Justiça Federal com uma ação civil pública exigindo que a União e o governo do estado do Rio de Janeiro tomem medidas urgentes para proteger o acervo histórico localizado no antigo prédio do Instituto Médico Legal (IML), na Lapa, região central do Rio. O documento denuncia o abandono do edifício e solicita a preservação, segurança e organização imediata dos arquivos.
Segundo o procurador regional adjunto dos Direitos do Cidadão, Julio Araujo, a ação se tornou inevitável devido à rápida deterioração do prédio e ao risco iminente de perda de documentos essenciais para o direito à memória, à verdade e à história do país.
Acervo abandonado
Durante visitas técnicas realizadas ao longo do ano, o MPF e órgãos especializados identificaram microfilmes em acetato e até em nitrato de celulose - um material altamente inflamável - já em avançado estado de deterioração. Foram também encontradas portas arrombadas, dossiês espalhados pelo chão e salas inacessíveis.
"A precariedade estrutural e o abandono do prédio ameaçam não apenas o patrimônio documental, mas também a segurança dos vizinhos e o direito de toda a sociedade brasileira de conhecer sua história", descreveu o procurador da República.
Memória e reparação
Para o Grupo Tortura Nunca Mais, que acompanhou a visita do MPF ao antigo prédio do IML em março de 2025, a iniciativa representa um novo ciclo na luta pela preservação e pesquisa das violações de direitos humanos no Brasil, abrangendo um contexto histórico mais amplo que apenas o da ditadura.
"O que vemos aqui é uma verdadeira abertura de arquivos da repressão, algo pelo qual lutamos há muito tempo. Esse processo não só possibilita o acesso a esses documentos, mas também contribui para a elucidação dos fatos e para a garantia da memória do país", afirmou Rafael Maui.
Maui defendeu um esforço conjunto para garantir a preservação do acervo. "O apoio dos órgãos públicos e da sociedade civil será essencial. É necessário formar um grupo de trabalho ampliado, e a participação ativa do Ministério Público nesse processo é indispensável. Precisamos unir esforços de diferentes instituições para garantir a conservação e valorização desse material histórico", avaliou.
Com base nos documentos encontrados pelo Grupo Tortura Nunca Mais no prédio do IML, por meio dos livros de registro de óbito, foi possível localizar o paradeiro de 14 desaparecidos políticos e, posteriormente, de um 15º. Eles estavam enterrados como indigentes no cemitério Ricardo de Albuquerque. Isso sugere que outras pessoas desaparecidas também podem ser identificadas a partir das informações contidas nesses documentos, destacou Felipe Nin, do Coletivo Memória, Verdade, Justiça e Reparação.
O MPF destaca que o estado do Rio mantém apenas dois vigilantes por turno na segurança do prédio, número insuficiente para impedir invasões. “A proteção atual é limitada e ineficaz. Mesmo com vigilância, usuários de drogas continuam entrando e permanecendo no local”, aponta o documento.
Documentos históricos
O acervo reúne aproximadamente 2,9 mil metros lineares de documentos e cerca de 440 mil itens iconográficos, incluindo registros da Polícia Civil das décadas de 1930 a 1960 e materiais do período da ditadura militar. São documentos que podem trazer novas informações sobre desaparecidos políticos, torturas e violações de direitos humanos reconhecidas pela Corte Interamericana.
"O valor histórico desse material é inestimável. Estamos diante de documentos que podem esclarecer violações graves, reconstruir trajetórias de desaparecidos e cumprir decisões internacionais que determinam ao Brasil o dever de preservar sua memória", destacou Julio Araujo.
O procurador lembra que, no Caso Vladimir Herzog, a Corte Interamericana afirmou expressamente que os Estados devem preservar arquivos sobre graves violações. "A deterioração desse acervo compromete não apenas a memória, mas a verdade e a própria democracia", afirmou.
Com o pedido, o MPF requer que a União e o estado elaborem, em 30 dias, um plano de trabalho para o tratamento do acervo e iniciem, em 60 dias, as ações concretas de análise e organização dos arquivos. A supervisão técnica deve ser do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Vigilância
O MPF solicita ainda no documento encaminhado à Justiça Federal, o mínimo de dez agentes por turno e medidas básicas de salubridade, como reparo de janelas, limpeza diária e prevenção de novas invasões. "Enquanto o acervo permanecer no local, é imprescindível que haja uma proteção real e diária. O atual cenário é insustentável", escreveu o procurador.
O avanço do processo judicial é crucial para que o país não perca documentos fundamentais para compreender sua própria história, diz o procurador.
"Sem conhecer e preservar esse passado, continuaremos incapazes de enfrentar práticas autoritárias que ainda persistem. A documentação existente no antigo IML é parte da memória do povo brasileiro", avaliou o procurador Julio Araujo.
O pedido reforça que, mesmo com a reversão do prédio já determinada pela Justiça, a União ainda não iniciou medidas concretas. Por isso, o MPF requer que o juízo imponha prazos, obrigações e, se necessário, multa diária para assegurar a proteção imediata do patrimônio.
Com informações da Agência Brasil